Crônica 34: OU VOCÊ ME AMA OU EU TE MATO!
1 Dia 1º de janeiro de 2025, 9h32. Silêncio absoluto em casa e na rua. Só escuto os pássaros a gorjearem e um velho a dar machadadas em paus de lenha. Digo “velho” e já me explico: não sei se é um velho, mas qual jovem ou adulto de meia idade estaria cortando lenha no primeiro dia do ano, às nove e pouco da manhã? Velhos. Daqueles que ainda preservam em suas humildes residências um fogãozinho a lenha, mesmo morando numa cidade onde o frio não faz morada, ou, se faz, é uma semana e nada mais. Porém, nada o tira de seu hábito sagrado, o qual ele trata a pão de ló. Se perder o hábito, morre no dia seguinte.
2 Meu amado pai acabou de levantar. Foi-se o silêncio. Como diz minha amada mãe: “Teu pai é uma casa cheia.” E ele é mesmo. Um mero “bom dia” é um comício. O homem, do acordar ao adormecer, é uma pulsão de vida fulminante. Dizem os filósofos que vida é movimento, quanto mais vida, mais movimento, pois movimento gera energia; e ele é a própria usina de Itaipu em carne, ossos e fluidos.
3 Sentou-se aqui na minha frente e está a assoviar e a responder as mensagens que recebera de “Feliz Ano Novo”. Todo mundo gosta do meu pai. Meus amigos, ao conhecerem-no, atiram-me à fuça: “Cara, tu é legal, mas teu pai é bem mais legal que tu.” Concordo sem fazer uma mísera concessão. É impossível competir com a própria usina de Itaipu. Mas não é só a energia pela energia. É uma energia, digamos, positiva — alguns diriam “positiva” até demais —, daquelas que está sempre a olhar o lado bom de tudo e a expressar isso para o mundo. Melhor ainda: é uma usina barulhenta, que às vezes chega a incomodar os mais próximos.
4 O homem tem uma vontade de viver que, se pudesse, viveria por uns dez. No consultório, quando recebo pacientes cabisbaixos, depressivos, mornos, me vem uma fantasia fulminante: pegar um tiquinho da ambição de viver do Sr. Ivan e distribui-la aos mendigos da vontade. Na alcova, pergunto-me de onde saiu tamanha potência. Assim como a usina de Itaipu nunca desliga, o Sr. Ivan, se pudesse não desligar, viveria para sempre ligado no 220, acordado, se deleitando da realidade que o cerca, amando a vida apaixonadamente.
5 Para apagá-lo, só com Zolpidem. Pior que nem faço graça. Meu pai não dorme sem remédio. Pode estar exausto, fatigado até o último, ter atravessado o Brasil de caminhão, ao deitar-se para então desligar o disjuntor, quem diz que desliga?! Frankl, depois de comer o pão que o diabo amassou nos campos de concentração, concluiu que os compêndios médicos mentem. Olhando para o meu pai, concordo com Frankl: mentem! Onde já se viu um homem funcionar tão bem sem dormir bulhufas?
6 Os psicólogos de prancheta e a OMS esfregam na cara de apedeutas como nós que o ser humano precisa de oito horas de sono por dia. Meu pai, com remédio, dormindo de três a quatro horas, é dono de uma saúde de vaca premiada. E fuma! Um maço por dia. Segundo ele, o segredo está na salada e na ingestão de água. Alguém poderia questionar: “Mas e os exames médicos, estão ok?” É uma incógnita. O velho gosta do mistério. Prefere acreditar no que está vendo. A única vez que passou por uma bateria de exames fora quando caiu de cima da carreta do caminhão e, para não cair de cabeça no concreto, sacrificou a mão esquerda, que fora parar quase no seu cotovelo.
7 À época, por dentro, o velhinho estava bem. Nada fora do normal. Sem diabetes, sem DST’s, sem pressão alta, sem colesterol etc. Hoje, ao analisá-lo por fora, chuto que por dentro deve estar tudo nos conformes. Faço graça com tal cenário para aliviar as revoltas de outrora. Já insisti muito para que fizesse exames anuais e que cuidasse da saúde, pois é isso, segundo algumas pessoas, que é o amor: querer que o outro dure, se possível, até à eternidade. E talvez seja difícil durar, pelo menos no plano terreno, sem consultas médicas anuais.
8 Desejo muito que meu pai dure no tempo, mas hoje, tenho uma ideia um pouco diferente do amor. Ou, melhor ainda, uma ideia mais profunda: quero que o outro, além de durar — o que não depende só de mim —, seja livre, seja ele. Há um caráter de liberdade no amor que nos faz sair do egoísmo. Explico: quando casei com a Adeline, não casei com a Adeline ideal que estava na minha cabeça egoísta, casei com a Adeline de carne, ossos e fluidos. Aquela que tem manias irritantes e defeitos irremediáveis, justamente porque ela é livre. Tal liberdade faz a Adeline ser a Adeline, como faz meu pai ser meu pai.
9 Houve um momento, em 2024, que percebi o óbvio: não adianta forçar. Tal devaneio se deu quando recebi uma questão no Instagram referente a uma moça comprometida ansiar por ir em baladas sem a companhia do seu pretendente. E o rapaz, afetadíssimo e indignado, atirava impropérios contra a namorada na ânsia que ela o respeitasse. Tornava-se, em poucos minutos, um ditador soviético. Queria que ela o respeitasse pelo temor. Não acho que isso funcione, nem a médio e nem a longo prazo. Também não estou dizendo que o rapaz devesse continuar namorando uma pupila do OnlyFans. O fato é que a única via que presta é a via do amor. “Vou te amar assim, inteira. Mesmo você parecendo — e às vezes sendo — uma vagabunda.”
10 Soou ridículo. Eu sei. Como ser manso e humilde de coração quando se namora uma vadia? A minha questão é: a moça precisa sair de si, entender o erro e querer avidamente deixar de ser uma aprendiz de meretriz. Forçá-la a isso por meio de uma imposição ditatorial, parece-me jogá-la ainda mais no fogo do inferno e na raparigagem. Vez ou outra, imagino-me sendo pai de um filho transsexual. Tal devaneio tem motivo: o que eu já ouvi em consultório de pais afetadíssimos que diziam-me que nunca aceitariam um filho gay, uma filha lésbica etc., não é brincadeira.
11 Imagino meu filho — ou filha — no sofá, todo emperiquitado, maquiagens, silicone, roupas femininas, o escambau. Sentaria ao seu lado e diria: “Carlos — ou Carla —, não sei mais, eu sempre vou te amar, pois você é meu filho. Posso não concordar com isso que você está fazendo consigo mesmo, mas nunca vou deixar de te amar. Sempre que você bater à minha porta, irei abrir. Sempre que você precisar de mim, irei atender. Te amo, sua bicha!” Então riríamos e nos abraçaríamos.
12 Dir-me-ia o leitor que imaginar é fácil. Pode ser, mas já é um exercício. Outro exercício que faço: filho drogado. Imagino meu filho, sentado no meio fio, fumando craque e eu ali, dizendo que o amo e que nunca o abandonaria, pois ele é meu filho. Lembrei-me de Nelson Rodrigues indo à rede nacional clamar para que os milicos soltassem seu filho, o Nelsinho. À época, em plena ditadura militar, o rapaz era assumidamente comunista. É de embeber o coração de amor ao ver o Nelson chorando na televisão e pedindo humildemente ao presidente que solte seu filho amado, que apesar de ser comunista, é amado pelo pai. E sempre será amado pelo pai. Se Nelsinho deixou de ser comunista, foi pelo amor do pai que o amou mesmo na fossa, mesmo na imoralidade, mesmo na sua mais potente miséria.
13 Para a mais potente miséria, a mais potente misericórdia. Você é livre para ser um miserável. Não posso obrigá-lo a não sê-lo. Aliás, até posso, mas de que adiantaria? De que adiantaria eu apontar uma arma na cabeça da Adeline para que ela fosse a Adeline ideal que está a fazer morada na minha cabecinha oca? Eu estaria assassinando o amor a facadas. Eis aí uma das críticas ateístas ao nosso Deus do Universo: “Se ele é Deus, por que já não nos fez amando e acreditando Nele?” A única explicação que encontro é no amor: não existe amor sem liberdade. Se a Adeline fosse obrigada a me amar, não seria amor, seria escravidão. “Ou você me ama ou eu te mato!” Eis o ouro: sabendo-me um miserável, contemplando a liberdade da Adeline em plena potência, poucas coisas são tão excelsas nesta porca vida quanto sentir-me amado por ela sem ter de apontar um revólver para sua cabeça.
14 Nem era isso o que eu queria dizer. Falava sobre o meu pai e a sua ojeriza às consultas médicas e de como isso me corroía as entranhas fazendo com que eu me zangasse com ele. Falava, cheio de indignação: “Pai, custa ir no médico?” Quase como se dissesse: “Pai, quero que você dure mais tempo comigo aqui nesta porca vida. Custa ir no médico?” Com o tempo entendi que não adianta forçá-lo a nada, logo, o que me resta, é amá-lo assim mesmo, exatamente como ele é.
Crônica escrita por Guilherme Angra, em janeiro de 2025