Crônica 56: LEITADA E GHOST
A minha esperança é que você não compreenda o título desta crônica
1 Minha esposa, na noite em que dormimos em Treze Tílias, numa pousadinha familiar — é claro que é familiar —, sussurra, antes de dormir, enquanto estávamos numa conchinha maravilhosa: “Amor, aqui é tão silencioso à noite que dá para ouvir a grama crescendo.” Perdi a piada concupiscente para refletir sobre o barulho e a pressa da modernidade. “Piada concupiscente?” Poderia ter dito: “Tem outra coisa aqui embaixo crescendo no silêncio.” Enfim, preferi dar vasão ao meu lado poeteiro e vez do putanheiro.
2 Escrevo esta crônica da módica casa dos meus pais, na serra gaúcha, em pleno inverno. Estou ao lado do fogão a lenha. Entre um parágrafo e outro, sorvo um chimarrão bem amargo para esquentar o corpo. Dizia ontem para a Adeline: “No futuro, ei de escrever livros aqui.” Imagino-me viajando para cá, num futuro distante, no qual estarei velho e brocha. Já disse: um homem com o pau na mão não faz nada de bom, ainda mais um pau duro. Admitamos: uma das melhores benesses do casamento é a estabilização do desejo. É só uma. Digo: uma mulher, um corpo, uma alma.
3 Não que deixamos de desejar mulheres alheias depois do casamento, mas a facilidade com que deslocamos o desejo sexual para algo fora do desejo sexual, é maior. Explico. Quando solteiro, do acordar ao adormecer, achava-me um sheik árabe, ansiando por um harém de semideusas que matassem a sede de um condenado que vivia com o pau na mão. Perdia horas sentado no sofá da sala descolando esquemas, os quais, em sua maioria, não se concretizavam — graças a Deus. Até o momento em que eu atentava-me ao relógio e sentia-me um pulha completo. Não produzia nada. Não lia um livro; não escrevia um parágrafo; não estudava bulhufas; não fazia nada de bom para ninguém. Era uma inutilidade mastodôntica. Tudo isso motivado pela tchanha de conquistar moças carentes que se renderiam aos charmes de um poeteiro meia boca.
4 O homem solteiro é um cachorro louco. À época, para ajudar, nem religião eu tinha. Um homem com religião já é um perigo constante, sem religião é o caminho do horror. Viverá uma vida de “leitada e ghost” até o dia de sua cova. Conheci tal termo numa live no YouTube e o entendi de imediato. Não sei se explico para o leitor inocente. Às vezes é preferível manter a ingenuidade, tornar-se idiota e aumentar as chances de ser atravessado pela graça.
5 Como quando nos deparamos com homens bondosos ao extremo; tão bondosos que passam uma imagem de “tansos”. “Tanso” é um adjetivo que ouvi muito de minha mãe ao se deparar com homens que eram sempre passados para trás pelo mundo. Eu, se tivesse o tamanho de um Dostoiévski, em vez de escrever O Idiota — livro no qual o personagem Míchkin é atravessado pela graça justamente por sua capacidade demasiada de se colocar sempre no lugar do outro —, escreveria O Tanso.
6 Parece haver uma certa ingenuidade na bondade. O homem que calcula em demasia, torna-se mau, torna-se um Raskólnikov. O próprio ato de calcular é fragmentar, despedaçar, decompor a unidade. O homem esperto demais não vai à missa, pois é perda de tempo. Calcula, calcula e calcula e percebe que religião é coisa de gente ignorante que precisa de uma esperança cega para a vida não perder o sentido.
7 No fim, as igrejas estão lotadas por conta do medo da morte. O homem inteligente da modernidade, ao racionalizar a vida e ao estar envolto numa cultura de “alta performance” e, por consequência, narcisista, despedaça com a graça, pois anseia em ganhar em tudo e acaba por acreditar em si mesmo. Acha que pode ganhar o mundo e o céu. Pior ainda: cria um método para ganhar os dois; e o vende para trouxas, por apenas R$ 997,00.
8 O brasileiro, se pudesse, seria um católico evangélico macumbeiro ateísta, tudo ao mesmo tempo. É isso que dá atirarmos a verticalidade pela janela e nos apegarmos à horizontalidade, à democracia. Tenho um espírito monárquico, confesso; apesar de saber que se estivesse numa monarquia, o que sobraria para mim seria uma vida de camponês, na qual de dia cultivaria a lavoura, e à noite, em meio a velas e lampiões, escreveria em papiros e faria amor com minha esposa em meio ao feno, numa espécie de estábulo, para não acordar as crianças.
9 Só de não ter que entrar na internet e deparar-me com gente burra que se leva a sério dando opiniões sobre o conflito de Israel e Irã, já seria uma dádiva. Ou ainda: não ter de ver camponeses coaches que ascenderam na vida vendendo cursos com métodos infalíveis de como se tornar um nobre, seria um alívio. Se nasce camponês, morre camponês. Se nasce nobre, morre nobre. Aqui na democracia há um estofo presidencial em todo analfabeto funcional que vive a dar pitacos na internet.
10 Como é libertador dizer “eu não sei” ou simplesmente o silêncio, daqueles que chega a dar para ouvir a grama crescer. As pessoas fazem barulho em demasia porque anseiam em aparecer, em ganhar em tudo, em alta performance até quando estão trepando. O resultado é a era do “leitada e ghost” no sentido em que não demoramos mais nas experiências e, por não demorarmos, não meditamos. Demorar é improdutivo; meditar é inútil; amar uma mulher depois do gozo é burrice quando se calcula a realidade e percebe-se que amar uma mulher até à morte é uma aposta cega, que exige mais fé do que razão, mais perdão do que “ganhar a discussão”. Quase como um soldado em direção à morte certa por amor à uma causa talvez já perdida, mas com uma esperança de ser atravessado pela graça.
Eu estou longe de escrever tão bem quanto você. Gosto demais da suas crônicas e compreendi o título, rs.
Guilherme, tenho uma biografia parecida com a sua. Esse texto me atravessou profundamente. Me falta ainda muita graça, mas um dia chego lá. Obrigado pelo seus textos e vídeos.