A 1ª temporada de True Detective é uma obra prima, e eu posso provar!
A análise mais completa da melhor série de todos os tempos.
Antes, um adendo: a análise que você lerá a seguir fora elaborada no ano de 2022. Porém, à época, fiz a burrada de postá-la nos stories do Instagram. Precisei de uns 200 stories para postar a análise inteira. Cagada, né?! Eu sei.
Outro ponto importante: há opiniões pessoalíssimas em toda a análise. Para mim, não existe homem neutro. Do nascer ao morrer, tomamos partidos.
Mais um ponto: minha escrita, em 2022, comparada com a minha escrita de hoje, passa fome. Além do mais, havia pensado a análise para postar no Instagram.
“Ah, mas agora você poderia ter reescrito a análise.”
Poderia, mas não estou com tempo hábil para tal. No futuro, o farei.
Por enquanto, fiquemos com o que tem.
Aproveite!
A série já acerta na introdução com a trilha sonora e as imagens:
Ainda lembro a primeira vez que deparei-me com tamanha beleza: me pegou de imediato. À época, lá pelos idos de 2013, passava pela fase de ateu revoltadinho, porém, mesmo estando cego para a realidade, não tinha como não prestar atenção nesta maravilha.
E por que a intro “acerta”? Ela está perfeitamente encaixada com o clima de toda a série. E que clima é esse? Tensão, mistério, miséria humana, desesperança, obscuridade e malevolência.
Você que assistiu, sabe do que estou falando. O meu objetivo, com esta humilde análise, é enriquecer seus imaginários e fazê-los se atentarem para o que muitas vezes passa despercebido pelos nossos olhos.
Há algo que a série enfatiza na maior parte das cenas: desesperança e obscuridade. As cores regadas a um amarelo “poluído”, o cenário, os personagens, a vida cotidiana, os diálogos, têm sempre uma atmosfera obscura, triste, lúgubre, acinzentada, nos levando por um caminho de sombra e desesperança.
A série se passa no sertão pantanoso de Louisiana.
O primeiro personagem que eu quero me debruçar e talvez o mais interessante, é ele: Rustin Cohle! O nome Rustin Cohle soa, em inglês, como “ferrugem e carvão” — dois materiais associados à decadência e à toxicidade — que representam bem a sua visão de mundo.
O detetive Rustin Cohle representa com maestria o que é um niilista e um racionalista ao extremo. Como ele mesmo se descreve:
“Eu me considero realista, mas, em termos filosóficos, sou chamado de pessimista.”
Rustin acredita que a consciência humana é um erro trágico da evolução. “Nos tornamos muito autoconscientes.” Para ele, não deveríamos existir segundo a lei natural.
Somos coisas que operam sob a ilusão de ter um eu-próprio, e somos programados para pensar que somos alguém, quando, na verdade, todos são ninguém (…) A coisa mais honrável para a nossa espécie é negar a nossa programação. Parar de se reproduzir. Caminhar até a extinção.
E Martin pergunta: “Mas então por que levantar da cama todas as manhãs?”
“Digo a mim mesmo que sou testemunha. A verdadeira resposta é a minha programação.”
Para Rust, o mundo é um “esgoto gigante no espaço sideral”.
Tal visão faz lembrar-me de trechos das cartas dos assassinos de Columbine (massacre que ocorreu na escola de Columbine, no Colorado - EUA, em 1999, tirando a vida de 15 pessoas):
Podemos concordar que há algumas semelhanças entre seu conteúdo e a filosofia de vida de Rust. A diferença é que Rust parece ter aceitado o desconcerto do mundo, diferentemente daqueles moleques, que não só não aceitaram o desconcerto da existência, como decidiram, envoltos de ressentimento, destruí-la.
O que falta, para Rust, é um olhar mais atento e profundo para a realidade, mas a gente vai chegar lá!
É inegável que nesta cosmovisão (visão de mundo) de Rust, há traços de alguns autores iluministas e pós iluministas, como Nietzsche, Descarte, Freud, Sartre etc. E, para quem já fez o meu curso O Jovem Tem Que Acabar, vai entender o porquê das semelhanças entre Rust e o imanentismo destes autores, principalmente o imanentismo do nosso tempo.
O que eu quero dizer com “imanentismo”? A imanência é o contrário de transcendência. Na prática, Rust, assim como aqueles autores e também como a nossa modernidade, olham para a existência com uma visão de mundo materialista, ou seja, não há nada além da matéria, do concreto, da “ciência”. Ou, se tiver, não temos como conhecer. O sujeito olha pedra, e só vê pedra.
É claro que poucas pessoas, no nosso cotidiano, são tão realistas como Rust. E por quê? Ao longo dos primeiros episódios descobrimos que Rust perdera sua filhinha, a Sofia, e, após o fatídico acidente com ela, o casamento não aguentou. Foi-se para as cucuias! Além disso, a sua infância e adolescência, no Alaska, parece ter sido um pouco triste, já que nas poucas vezes que ele fala sobre seu pai e sua mãe é sempre de uma maneira fria e um tanto quanto cínica. Seu pai já é falecido e, quando Marty pergunta se a mãe de Rust está viva, ele responde: “Talvez”.
Soma-se a isso o fato de seu trabalho nada alegre: investigar homicídios. Já pensou você ficar por horas analisando as fotos de vítimas fatais, lendo cada detalhe dos processos mais macabros possíveis, dia após dia? O resultado é um homem que, por uma falta de sentido transcendente, coloca toda a sua energia, todo o seu potencial em resolver crimes. Ir atrás de alguma verdade que dê sentido para sua vida. E nisto ele é excelente.
Tanto é verdade que a sua entrega para o caso Dora Lange é total; o que contrasta com a entrega tímida de Marty e do resto da corporação.
isso fica claríssimo desde as primeiras cenas da série. Os policiais “comuns” olham para aquela cena de crime e só conseguem dizer: “É algo diabólico!”
Enquanto Rust analisa atentamente o corpo de Dora Lange com profunda curiosidade. E ele diz:
Isso vai se repetir, ou já aconteceu antes. É uma representação fantasiosa, um ritual, fetichismo, iconografia. Esta é a visão dele [do assassino]. O corpo dela é um mapa de amor parafílico.
“Guilherme, que negócio é esse de ‘amor parafílico’?”
As parafilias são práticas sexuais reprovadas e proibidas pela sociedade, como por exemplo a pedofilia, a necrofilia e a zoofilia.
(Mais pra frente falarei do crime com mais detalhes)
Tecnicamente, Rust é imbatível. Ele sabe do que está falando, ele tem repertório: tanto teórico quanto prático.
E aqui muitos de nós sentimos uma certa admiração por ele. Não sei vocês, mas, para mim, ver uma pessoa fazendo o seu trabalho com esmero é algo admirável.
Então reparem que a vida de Rust é completamente cinza! Não há nada alegre. A única coisa alegre e colorida que tinha em sua vida se foi tragicamente. O que resulta em um homem com Transtorno de Estresse Pós-traumático que se obriga a tomar barbitúricos para continuar existindo.
Como ele mesmo diz: “Eu não durmo, só sonho!”
Obviamente, Rust, apesar de ter aceitado a tragédia da existência, percebe-se que ele se mantém de pé com a ajuda de remédios, cigarro, álcool e com um hiper foco na investigação.
É como aquele sujeito que nunca para, pois se parar, sua psique entra em colapso. No fundo, Rust está revoltado contra a realidade que o cerca. Mas é uma revolta sutil, com discursos pessimistas e um cinismo típico de quem se acha mais inteligente do que o resto da humanidade.
Eu, como terapeuta, afirmo que a revolta contra a realidade é a origem de todos os transtornos mentais. Como disse, numa aula, o meu professor Thiago Andrade Vieira:
O transtorno mental é uma amostra do que é o inferno. Porque o inferno é um abismo no qual não se enxerga nada e não se consegue sair dali. É a desesperança completa, nada está conectado em nada. E é exatamente isso que uma pessoa que sofre (pelo menos dos principais transtornos psiquiátricos do nosso tempo - depressão e ansiedade) sente. Ela olha pro mundo e não consegue se encaixar e encaixar as coisas.
Marty, ao visitar a casa de Rust, diz para os investigadores: “Na segunda semana juntos, vi onde ele morava. Fiquei com pena dele. Com certa idade, um homem sem família pode ser trágico.”
Pode, mas de nada adianta ter uma família só para falar que tem.
E então chegamos em Martin Hart, o parceiro de Rust.
Eis um dos grandes acertos de Nic Pizzolatto (Diretor): Marty e Rust são opostos em temperamento e personalidade. O que deixa a narrativa ainda mais interessante. Exatamente por serem opostos, nas investigações, eles se complementam.
Enquanto Rust parece ser de temperamento melancólico, Marty se aproxima mais de um colérico imaturo.
E Marty é o legítimo homem comum: crê em Cristo — tipo católico de IBGE —, tem seu trabalho rotineiro, o qual não é nada excepcional; e tem uma família que tinha tudo para ser propaganda de margarina: uma esposa gostosa e duas filhas lindas. Porém, como acontece em grande parte das famílias por aí e, principalmente, nos casamentos, a “realidade”, segundo ele, foi o que causou os estragos.
E que estragos foram esses?
O fim de seu casamento com a Maggie e uma filha bem problemática.
Como eu falei, adjetivei Marty como um homem comum. O que eu quero dizer com “um homem comum”? É o homem da pose: finge para a esposa que é um bom marido; finge para as filhas que é um bom pai; finge para Deus que acredita Nele; e finge para os colegas de trabalho que é o maior pica grossa da corporação.
Ou seja, Marty representa muitos homens por aí, os quais não levam nada na vida a sério. É tudo “meia-boca”. E acham que é possível viver assim e ainda ter uma família que preste. No fundo, tornam-se hipócritas.
Marty não sabe quem ele é. Não sabendo quem ele é, o resultado será um homem refém de suas paixões.
É exatamente isso o que acontece. A começar pela primeira traição, a qual Marty justifica para os investigadores: “É preciso de uma válvula de escape antes de voltar para a família. É pela sua esposa e filhos também.”
Olha aí a “válvula de escape”:
Eis uma das desculpas mais utilizadas pelos homens para tirar o peso de uma traição: “A realidade”. Quase como se dissessem que são obrigados a trair, como se não tivessem escolha.
No consultório, quando atendo homens que traíram, a tendência é sempre arrumar uma desculpa para justificar o pecado. O nosso ego quer nos proteger; e assumir a culpa pelas nossas escolhas erradas é ter de se olhar nu no espelho. É mostrar-nos fracos e vulneráveis para nós mesmos.
O que esses homens não percebem é que se trata do contrário: achar um culpado para o seu erro é ser ainda mais fraco. E percebe-se que Marty está sempre buscando um culpado: “A realidade!”, “O trabalho” etc.
Então Marty acha que pode ter sua família perfeita sendo quem ele é. Como diz Rust: “As inadequações da realidade sempre emergem.” E elas emergem de maneira sutil: Marty vai se tornando cada vez mais desatento, tanto no trabalho quanto em casa. Ele está ali mas não está. Ora, qualquer esposa percebe isso. E é óbvio que a Maggie, uma hora, iria perceber.
“Por que essa distância entre nós, Marty?” Pergunta ela. E ele, mais uma vez, acha culpados: o trabalho, a investigação…
Marty é tão ignorante sobre si mesmo que começa a ter ciúmes da própria amante. É o que faz ele invadir a casa dela na madrugada, irascível, como se a amante sair com outro cara fosse uma traição contra ele.
Já disse muitas vezes por aqui: o imaturo não pensa, só reage a estímulos. Coloca o coração na frente do cérebro.
Não tinha como acabar bem essa história!
No outro dia, no trabalho, com um certo peso na consciência e por não saber quem é, ele pergunta para o Rust se o homem pode amar duas mulheres ao mesmo tempo:
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No fim, a amante conta tudo para Maggie! Resultado: ela e as filhas saem de casa e ocorre a primeira separação do casal.
Quantos homens não jogam tudo fora por causa de uma gozada? Algo que demorou anos para ser construído é destruído em meses, talvez dias.
Reparem que eu ainda sequer cheguei na investigação, nos crimes, nos rituais satânicos, mas vamos chegar lá. A riqueza dessas análises está justamente na análise da personalidade dos personagens.
Agora que já temos uma boa noção de quem é Rust e de quem é Marty, podemos nos aprofundar na investigação dos crimes.
Reparem que a ambientação de Louisiana é mostrada para nós, telespectadores, de uma forma um tanto quanto lúgubre: prostituição, drogas, sexo, cartazes de crianças desaparecidas, escolas abandonadas, pobreza, miséria, famílias desestruturadas, etc.
Quando os detetives começam a visitar testemunhas, fica nítido que aquelas pessoas vivem vidas disfuncionais, tristes e sem esperança. Não é de se espantar que em um lugar como aquele, o mal se prolifere da pior maneira possível: contra crianças e pessoas mais vulneráveis.
Vocês já se perguntaram por que em alguns rituais satânicos se sacrificam crianças?
Naquele momento, os discípulos chegaram a Jesus e perguntaram: “Quem é o maior no Reino dos céus?” Chamando uma criança, colocou-a no meio deles, e disse: “Eu asseguro que, a não ser que vocês se convertam e se tornem como crianças, jamais entrarão no Reino dos céus.” (Matheus 18: 1-3)
Crianças simbolizam pureza e inocência. Como o próprio Rust diz ao falar da morte da filha:
Penso na minha filha agora e do que ela foi poupada. Às vezes sou grato. O médico disse que ela não sentiu nada, entrou direto em coma. E em algum ponto da escuridão ela passou para o além-mundo. Não é uma forma linda de morrer, hein?! Sem dor, como uma criança feliz. O problema de morrer depois que você já cresceu é que o dano já está feito. Tarde demais!
E que dano seria este? A consciência do mal, a consciência do desconcerto do mundo. Você deixa de ser inocente. E o mal entra em nós pela consciência.
Já refleti e estudei muito sobre o mal, o qual, ao longo da história, fora se tornando cada vez mais sofisticado, ou seja, o mal passou a ter uma aparência de bem. Por quê? Porque ele consegue se proliferar mais facilmente. É como aquela frase: nada pior do que uma mentira que parece uma verdade. E o diabo é o pai da mentira, como os antigos sempre falavam.
A série deixa isso claro: a seita satânica utiliza-se do cristianismo para “pescar” as vítimas. Ora, quem desconfiaria da família Tuttle, por exemplo? A família que construiu escolas cristãs e igrejas por toda Louisiana. Além do fato de estarem em altos cargos políticos.
Ao final do primeiro episódio, lembram-se que o senador Billy Lee Tuttle vai até a delegacia conversar com Rust e com Marty? Então é sugerido criar uma força-tarefa para crimes com conotação “anti-cristã”, a qual Rust é controverso e, por isso mesmo, toma uma dura do chefe de departamento.
Rust desconfia dos Tuttles desde o começo. Não é à toa que Marty é obrigado a admitir: “Rust tinha a melhor habilidade para fraquezas humanas que eu já vi na vida.”
ALERTA: A partir de agora a análise será mais “pesada”. Irei tocar em temas sensíveis, como abusos, estupros e como isso marca uma pessoa. Portanto, se você se sente realmente incomodado com tais temas, sugiro que não continue.
Como eu disse antes, crianças simbolizam pureza e inocência. E uma das maneiras mais comuns de arrancar essa pureza, é através de uma sexualização precoce. Isso pode acontecer de diversas maneiras, desde inserir crianças em contextos com conotações sexuais até chegarmos ao extremo do abuso sexual (estupro).
Algo que me deixou encucado na série, e que não foi explicado, fora a filha mais velha de Marty, a Audrey, que desde criança parece ser a mais “problemática”. A começar pelos desenhos:
Ela tirou tais referências de algum lugar. E isso a série não explica objetivamente. Maggie, ao conversar com a Audrey sobre os desenhos, diz: “É feio! Deixa uma coisa que devia ser bonita, feia.”
Outra cena intrigante, é quando Marty vai chamar as filhas para jantar e elas estão brincando com uns bonecos:
O que isso parece para você?
Cinco homens e uma mulher nua! O mesmo acontece quando Rust, ao dar seu depoimento para os investigadores, monta com as latas com cinco bonequinhos em volta de um.
Lembram da fita macabra? A mesma coisa: cinco homens e uma criança.
E desta foto, quando os detetives visitam a casa da mãe de Dora Lange:
Cinco pessoas com máscara e uma criança no meio:
Como Rust diz no início da investigação: “Isto já se repetiu. Vai acontecer de novo.” Pois se trata de uma seita, de uma cultura malévola que criou raízes naquela região.
E lembram-se das pistas que mais chamam a atenção no assassinato de Dora Lange?
A espiral nas costas da vítima, a coroa e os chifres e artefatos triangulares feitos de paus.
Após a autópsia, os detetives descobrem que a vítima fora drogada, amarrada, abusada, torturada com uma faca e estrangulada. Em suma, eles descobrem todos os sinais de um mega-ritual satânico.
Sobre os triângulos de paus:
Um reverendo de uma igreja do interior diz aos detetives que estas coisas são "redes do diabo", e são usadas "para pegar o diabo antes que ele chegue perto demais". Eu pesquisei sobre as tais “redes do diabo”, mas não achei nada relevante, apenas que são artefatos e símbolos do Vodu.
Já, sobre a espiral, a pesquisa deu bons frutos:
A preferência do espiral por cultos que fazem rituais satânicos, tortura, controle mental e abuso de crianças é uma representação das obsessões mais obscuras da elite oculta.
O símbolo espiral da série é realmente usado por redes de homens obscuros da vida real para divulgar secretamente suas "preferências." Aqui está um arquivo do FBI descrevendo os símbolos utilizados por "amantes de meninos":
A espiral é o sinal da seita!
À medida em que a investigação avança, os detetives se deparam com boatos sobre uma elite de "homens ricos" sacrificando crianças. Eles também começam a ouvir sobre a mitologia em torno do caso.
Há um lugar para o sul, onde todos esses homens ricos vão para a adoração ao diabo. Eles sacrificam mulheres e crianças, todos foram assassinados lá, em algum lugar chamado Carcosa e um tal de Rei Amarelo. Ele disse que há tudo isso, como pedras antigas na floresta que as pessoas vão, tipo, adoração. Ele disse que há tanta matança lá embaixo. A espiral é seu sinal.
Ao final da série, se descobre — por insistência de Rust — que a família Tuttle é quem está por trás dos rituais. Mas, por se tratar de uma família rica e poderosa — na política e na religião —, a mídia abafa o caso.
A elite maldosa dificilmente vai pagar pelos seus crimes neste mundo aqui. Mas há um lugar bem quente esperando por eles.
Já que os Tuttles se tornam “café com leite”, vamos falar dos três bodes expiatórios da elite, começando pelo Reggie Ledoux:
Cara feia, de mal amado. Não tem como você passar por um homem destes e não sentir um frio na espinha. O mal, aqui, está bem explícito. Diferentemente dos Tuttles, que têm a aparência de bem.
Reparem nesta tatuagem:
Se trata de Baphomet dentro de um
pentagrama invertido. Este é o emblema da Igreja de Satanás, é um pentagrama com um dos vértices voltado para baixo, indicando o reino de Satanás.
Este símbolo já era utilizado para representar a magia negra: com o vértice para baixo e aplicado sobre a cabeça de um bode. O Baphomet, símbolo da Igreja de Satã, consiste em três elementos: a estrela pentagonal invertida, os símbolos colocados ao lado de cada uma das extremidades e a cara de um bode.
No pentagrama invertido, tal como interpretado pelos satanistas, as três pontas inferiores representam a negação da Santíssima Trindade e as duas pontas superiores representam o contraste, a igualdade e a oposição que se verificam no universo, tais como: criação / destruição, positivo / negativo, masculino / feminino, ação / reação, vida / morte, ativo / passivo, etc. Representa também a supremacia do desejo físico, claramente acima da espiritualidade. Em um pentagrama invertido pode-se inserir a figura da cabeça do bode: os dois pontos superiores são os chifres, as pontas laterais são as orelhas e a parte inferior a ponta da barba. Baphomet (o bode representado) seria o espírito da natureza e guardião das portas do inferno.
Por meio destas explicações, passamos a entender também que a verdadeira guerra que vivemos é a guerra espiritual: da luz contra a escuridão, do bem contra o mal, do belo contra o feio, da verdade contra a mentira.
E algo que me chamou bastante a atenção, foi o fato de que o pentagrama invertido também representa a supremacia do desejo físico acima da espiritualidade.
Olhem para a nossa cultura! Sexualizada ao extremo, materialista ao extremo.
Lembram do sogro de Marty dizendo: “Eu vi as crianças de hoje. Todas de preto, maquiagem em seus rostos. Tudo é sexo.”
Mas Marty não dá muita moral para o seu sogro.
A Audrey cresce e se torna exatamente o que seu avô disse anos atrás:
Nessa cena, ela foi pega pelo seu pai fazendo sexo com dois caras em uma camionete. Isso fez com que Marty a chamasse de "vagabunda" e lhe desse um tapa na cara, além de dar uma surra nos dois moleques que fizeram sexo com ela.
Como eu disse, Marty não sabe quem é, não sabendo quem é, apela para a violência.
A transformação de Audrey de uma menina inocente a uma adolescente promíscua mostra como a depravação e imoralidade da elite, do mainstream, acaba afetando toda a população. Enquanto ela não é vítima direta da elite, ela é uma vítima indireta através do ambiente falho que ela cresce: as brigas e a separação dos pais. Nós aprendemos mais tarde que, quando adulta, Audrey "às vezes se esquece de tomar suas pílulas", dando a entender que ela tem problemas mentais e que estava indiretamente traumatizada com esse contexto.
Voltando ao Reggie Ledoux: quando os detetives o prendem, ele fala algo para Rust: “Sei o que acontece agora. Vi você em meu sonho. Você está em Carcosa comigo. Ele vê você. Você vai fazer isso outra vez. O tempo é um círculo plano.”
Gostaria de aprofundar sobre a mitologia que há na série, a qual foi fortemente inspirada pela literatura de ficção/horror. Quando Reggie diz: “Ele vê você.” Reggie está se referindo ao Rei de Amarelo, o qual achamos, ao assistir o episódio, que se trata do próprio Reggie ou de seu colega Dewall Ledoux. Todos somos enganados: Rust, Marty e nós, telespectadores.
E quem diabos é o Rei de Amarelo? Segundo Rust e seu pessimismo, é o monstro que aparece no fim dos nossos sonhos:
Mas, pesquisando sobre o tal Rei de Amarelo, conclui-se que ele é uma representação de um deus, e este Deus é representado na realidade com ossos, galhos, chifres e um manto amarelo. Esta representação se encontra em uma estrutura abandonada apelidada de Carcosa.
A mitologia da série se inspira muito na literatura de ficção científica, principalmente em obras como O Rei de Amarelo, de Robert W. Chambers, que menciona uma cidade perdida chamada Carcosa:
Ao longo da costa as ondas da nuvem quebram,
Os sóis gêmeos afundam sob o lago,
As sombras alongam
Em Carcosa.
Estranho é a noite em que as estrelas negras sobem,
E luas estranhas circulam pelos céus
Mas mais estranho ainda é
Carcosa Perdida.
Músicas que as Híades iriam cantar,
Onde batem os farrapos do Rei,
Deve morrer sem dar notícias
na escura Carcosa.
Canção da minha alma, minha voz está morta;
Morre tu, anônimo, como lágrimas não derramadas
Quer secar e morrer
em Carcosa Perdida.
Quando os detetives encontram o esconderijo de Reggie e Dewall, eles acham duas crianças que eram mantidas em cativeiro. Marty, ao encontrá-las naquele estado deplorável, não consegue segurar a sua ira. Vai até Reggie e o estoura os miolos. Nessa cena, Marty lavou a alma de muita gente.
Mas reparem que matar Reggie e Dewall não traz de volta a pureza daquelas duas crianças, que foram estupradas por meses.
O estupro e o abuso são coisas que mancham a história de um indivíduo de uma maneira profundamente negativa. Como já falei diversas vezes por aqui: nós, depois que passamos da infância e, principalmente, quando saímos da casa dos nossos pais, tomamos as nossas próprias decisões. Escrevemos a nossa própria história. Digo isso para mostrar que o ser humano, diferente de outros seres vivos, é livre. Ou seja, ele tem escolha. Ele escolhe como quer viver e como contar a sua própria história.
A dor lancinante de um abuso ou de um estupro se encontra principalmente no fato de que você não escolheu aquilo. Alguém lhe “arrancou” a humanidade no momento de um abuso ou de um estupro, justamente porque você é tratado como se fosse um animal, um objeto.
Imaginem aí, meus caros, o tamanho da maldade que é fazer isso com uma criança…
Na série, uma das crianças resgatadas, passa o resto da vida catatônica. A catatonia é um tipo de esquizofrenia caracterizada por períodos de passividade alternados a momentos de agitação extrema. Imaginem o esforço dessa menina para apagar de sua memória os meses de estupros frequentes. Imaginem como fica o imaginário de uma criança que passou por tal situação.
E como eu falei: o mundo entra em nós pelos cinco sentidos. Então, não se trata apenas da dor física que ela sentiu, mas o cheiro do lugar, os objetos que ela viu dia após dia, a comida que ela comeu, os sons que ela ouviu. Enfim, dependendo de como a razão dela fragmentou e interpretou a experiência, tudo passa a ser traumatizante na realidade: homens, lugares, objetos, alimentos, sons etc., pois a lembra daquele momento no qual ela teve a sua humanidade arrancada de si mesma pela pura maldade humana.
Rust, em 2002, desconfiado que ele e Marty não tinham pegado o “Rei de Amarelo”, vai até o hospital psiquiátrico tentar falar com a menina. Ela, ao lembrar da experiência, se desespera; fica completamente aterrorizada com a lembrança, indo para um estado de agitação descontrolado, o qual só é cessado com a ajuda de medicamentos.
Que tal então conhecermos Errol Childress, o “Rei de Amarelo”?
Ao investigar a família Tuttle, os detetives descobrem que Sam Tuttle tem filhos de uma amante. Um deles é Errol Childress, um “filho bastardo” que foi maltratado pelos Tuttles. Na verdade, tudo indica que ele foi vítima, quando pequeno, de rituais satânicos. Seu rosto possui uma cicatriz devido aos maus tratos.
Nesta foto, vemos que o símbolo da espiral foi queimado na carne de Errol, como se ele estivesse “marcado” por ele. Em suma, Errol não é o chefe da seita, e sim, mais um “peão” que fazia o “trabalho sujo”.
Enquanto seu pai é uma das pessoas mais ricas e mais respeitadas na Louisiana, Errol vive em um barraco imundo com uma meia-irmã (igualmente imunda) com quem ele copula. Em outras palavras, Errol claramente não é parte da “elite”, mas um subproduto ilegítimo dela. Enquanto ele dá um rosto ao vilão da série, é claríssimo que ele, quando criança, também fora uma vítima da seita.
Os “cabeças” por trás da espiral nunca foram pegos. Embora Errol tenha cometido crimes atrozes, ele era um produto de um sistema maior e muito mais profundo.
Quando os detetives finalmente encontram e matam Errol, eles são enviados para o hospital para se recuperar. Lá, nós ouvimos uma reportagem de TV afirmando que o Procurador-Geral do Estado e o FBI não acreditam nos rumores de que o acusado era, de alguma forma, relacionado com a família do senador Edwin Tuttle. Esse pequeno pedaço de informação confirma que a Procuradoria Geral do Estado, o FBI e os meios de comunicação parecem estar “em conluio” com a espiral, pois estão usando de desinformação para limpar o nome da família.
Rust, então, diz a Marty que, embora eles tenham pego Errol Childress, seu trabalho não estava completo:
“Tuttle, os homens no vídeo… Nós não os pegamos todos.”
E Marty responde:
“Sim, e nós não vamos pegar todos eles. Esse não é o tipo de mundo que existe, mas nós temos o nosso.”
Se vocês repararam, Rust parece ter um sexto sentido que se manifesta ao longo da investigação. Ele tem visões, “lê” as pessoas em poucos segundos e pode até mesmo “sentir o gosto” das cores.
Lembram que Rust, ao chegar no esconderijo de Errol (Carcosa), sente gosto de alumínio e cinzas? É o mesmo gosto que ele sente no primeiro episódio ao se referir a “psicosfera” daquele lugar:
“Fico com gosto ruim na boca aqui. Alumínio. Cinzas. Sinto o cheiro da psicosfera.” Rust sofre de sinestesia devido aos quatro anos que trabalhou disfarçado para a narcóticos.
A sinestesia é uma condição neurológica que interpreta, de diferentes formas, os sinais percebidos pelo sistema sensorial. Dito de forma mais coloquial, a sinestesia é uma “salada” neurológica que provoca a percepção de vários sentidos de uma só vez. Por exemplo: sentir o gosto nos nomes. Ver cores para diferentes palavras. Sentir cheiros para cada frase. Sentir a textura das músicas.
“E que diabos é esse negócio de ‘psicosfera’?”
“Psicosfera” pode ser definida como “a esfera da consciência humana”, e toma suas raízes no conceito de “inconsciente coletivo”, de Carl Jung. Ele basicamente afirma que todos os pensamentos que passam pelo cérebro humano são “convertidos” pelo neocórtex e projetados para fora em dimensões etéreas (fluídas). Os seres humanos, portanto, vivem em uma “atmosfera de pensamentos”, um conceito que também é referido como “noosfera”, por Vladimir Vernadsky e Teilhard de Chardin. Segundo eles, a existência dessa “psicosfera” faz com que os seres humanos sejam obrigados a responderem a ideias, mitos e símbolos semelhantes.
O conceito de psicosfera é importante nos círculos ocultistas que realizam rituais para influenciar o “inconsciente coletivo” – muitas vezes para fins nefastos.
E para Rust, a consciência é uma “sala trancada”, um pesadelo no qual vivemos presos, como fantoches, destinados a sermos eliminados pelo “monstro” no final.
Partindo da perspectiva da série, quase concordamos com Rust — talvez alguns concordem. Parece que vivemos em um mundo dominado pelo mal, e o que fazemos é criar ilusões para suportar a existência.
Certamente Rust nunca conheceu a história dos santos, a súmula teológica de Tomás de Aquino ou sequer deu um passo de humildade para conhecer a Verdade. E eu aposto que se alguém sugerisse isto a ele, sua resposta seria: “Fuck you!”
Se tem algo que falta em Rust é a humildade, pois o princípio do conhecimento, segundo Hugo de São Vitor, é a virtude da humildade. Entretanto, pelo fato dele não ter percebido o amor em sua vida, ter perdido sua filha, e ainda ter tido uma influência de autores materialistas, seu olhar para a realidade alcança apenas a escuridão. E ela é óbvia mesmo!
No livro O Desconcerto do Mundo, de Gustavo Corção, o autor escreve: “Há um desconcerto no mundo. Onde está o homem está o gemido. Em qualquer esquina, qualquer homem esbarra no absurdo.”
Ora, todos vamos morrer. Perderemos pessoas que amamos. Sentiremos dor. Podemos quebrar psicologicamente e fisicamente. Nos deparamos com atos malévolos. Não temos certeza absoluta de onde viemos e para onde vamos. Enfim…
Todos nós percebemos este desconcerto! Não há nada de novo sob o sol, segundo o Eclesiastes. O caminho mais fácil, partindo de uma visão racionalista, é pensarmos como Rust, como Freud, como Nietzsche, como Marx. E em todos eles há uma revolta, um ressentimento contra a realidade. No fundo, estes homens queriam que o céu fosse aqui. Eis a origem de suas revoltas.
O que eles não perceberam é que este “querer um paraíso” é uma pista. “Pista do quê?” Uma pista de que estamos no mundo, mas não somos do mundo. Temos uma sede de eternidade que erramos ao tentar saciá-la aqui, na matéria. A filosofia que estes homens seguem “é uma filosofia de vida que pretende adaptar o homem ao mundo, e cingir a sorte do homem aos horizontes terrestres. Cada vez que isto for tentado, não é somente a felicidade no céu que se perde, é inicialmente a felicidade da terra.”1
E como diz Corção:
O homem é um ser que tem em si, no centro, no diâmetro de sua alma, já aqui e agora, dimensões de eternidade; e como se não bastasse tal estatura para desequilibrá-lo no mundo, é ainda um ser imitado pela Pessoa divina que se fez carne, e que nos veio trazer um convite para uma festa no céu, na intimidade de Deus.
Rust não está errado quando diz ter um monstro no final da jornada. Aliás, terão vários. Ele erra em não aprofundar o raciocínio. E depois do monstro? E depois da escuridão?
Tanto é verdade que ele mesmo, na última cena, a qual eu sempre me emociono, relata para Marty como foi sua experiência de quase morte:
Houve um momento… quando eu estava nas trevas. Qualquer que fosse o meu estado, nem mesmo conscientemente… era uma vaga consciência nas trevas. Eu podia sentir minha razão desvanecendo. Mas sob as trevas, havia um outro plano, mais profundo e quente. Como uma substância. Pude sentir, cara! E eu sabia, sabia que minha filha estava me esperando lá. Foi tão nítido que pude senti-la! Eu senti algo do meu pai também. Era como se eu fosse parte de tudo que amei. E nós três estávamos esvanecendo. E eu só tinha que deixar fluir. Foi o que eu fiz. Trevas, aí vou eu! E eu sumi. Mas ainda consegui sentir o amor dela. Até mais do que antes. Somente aquele amor. E depois eu acordei.
Rust precisou passar por uma experiência de quase morte para conseguir compreender que há algo mais profundo além das trevas, além do desconcerto do mundo, além de gemido, além do monstro no final do pesadelo. Sim, há uma luz, há o bem mais elevado, há o amor mais alto.
Só uma experiência como essa para trazer otimismo para alguém como Rust. Podemos concordar que o último diálogo entre ele e Marty, quando ambos estão olhando para o céu noturno, foi uma das melhores coisas da série:
Rust: “Marty, eu olhei pela janela daquele quarto todas as noites só pensando em uma história, a mais velha: luz contra escuridão.”
Marty: “Bem, sei que não estamos no Alasca, mas acho que o território sombrio é maior.
Rust: “Está olhando de forma errada para o céu. Uma vez só havia escuridão, na minha opinião, a luz está ganhando!”
Na verdade, a luz já ganhou. Cometemos o erro de achar que o mal é equivalente ao bem. Ou, que Deus é equivalente ao demônio. Meus caros, o demônio foi criado por Deus. Deus é infinitamente maior; e ele é Amor.
“Então por que ele permite o mal?”
Não existe amor sem liberdade. Deus é tão bom que ele não te obriga a amá-lo. Se atentem a isto: você é livre para não amá-lo. Lúcifer escolheu não amá-lo. E também é um erro achar que Lúcifer deseja tomar o lugar de Deus. O demônio não é burro. Ele sabe que não pode contra Deus. Então, o que sobra para o Sete Peles? Tentar levar a gente para o inferno.
Quando Rust está no leito de hospital, olhando pela janela e enxergando o seu reflexo, sua aparência física nos lembra Jesus Cristo. No início da série, quando Marty pergunta para ele o porquê alguém que não acredita em Deus tem um crucifixo na parede, ele responde algo sobre aceitar a própria crucificação.
Mas de nada vale aceitar a própria crucificação, que é um sacrifício, sem a esperança no Amor maior. Na minha opinião, Rust, assim como grande parte dos ateístas, pessimistas e realistas que conheço, estão clamando pela compaixão de Nosso Senhor Jesus Cristo.
No fim, me parece que Rust enxergou a compaixão de Cristo por meio do amor puro de sua filha.
Eis o final: Rust parece ter compreendido que não existe só trevas e Marty parece ter compreendido que é possível perdoar alguém que comeu sua mulher.
Zoeira! Marty, ao ser visitado por sua família no hospital, parece ter percebido a vida que realmente vale a pena.
Quero que vocês percebam que se nos atentarmos para as experiências cotidianas, seja assistir a uma série, a um filme, ler um livro, dialogar com uma pessoa qualquer, dar um abraço em alguém que você ama, enfim, se ajustarmos o nosso olhar para a realidade, é possível enriquecer as nossas experiências mais banais.
Isso faz com que a nossa vida adquira um certo brilho. No consultório, uma das coisas mais comuns é a cegueira. O paciente não enxerga o óbvio ululante: um milagre chamado realidade.
Então nada o encanta. Ele vive a vida matando tempo, pois assim tudo passa mais rápido e ele se livra do tédio que é existir.
Estou aqui para ajudá-los a abrir os olhos para a realidade.
Sou terapeuta desde 2021. CLIQUE AQUI caso queira saber como funciona o meu trabalho no consultório.
Trecho do livro O Desconcerto do Mundo, de Gustavo Corção.
Obrigado pelo texto. Li somente os primeiros parágrafos e salvei o post. Vou assistir a série e depois voltar aqui para ler tudo.
Ótima análise. Foi muito bom reler alguns diálogos da série, agora com mais profundidade e tempo.